quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Em memória de Natí Cortez

JORNAL DE FRANKLIN JORGE | Em memória de Natí Cortez *
por Redação

FRANKLIN JORGE
Jornalista

Essas coisas vos escrevemos, para que nossa alegria seja completa. João, 1-4.

SENHORAS E SENHORES:

Animado pelo impulso da oportunidade, eis-me aqui, honrado com o convite feito pelo jornalista Luiz Gonzaga Cortez Gomes para prestar depoimento nessa celebração em memória de Maria Natividade Cortez Gomes, escritora natalense, vocacionalmente dramaturga e trovadora, uma dessas inteligências cheias de vida.

Tenho-a ainda muito viva na lembrança, sempre entusiasmada e cheia de fé, urdindo suas peças e escritos líricos. Perita na arte do bate-papo, às vezes se referia a alguém que tinha boa palestra, como um causeur. Amava a França e, como muitos franceses, tinha o espírito em alta conta. Era uma mulher muito prática que educou e formou seus Filhos. E agora, já avó, quando a conheci, entregava-se aos deleites do pensamento.

Ainda me lembro perfeitamente de como a conheci, em fins dos anos 60 ou em princípios dos 70, antecipadamente, por informação de uma nossa amiga em comum, a escritora Maria Eugênia Maceira Montenegro, mineira de Lavras que se tornara norte-rio-grandense do Assu, uma constante e fiel divulgadora do teatro e das peças que escreveu e em grande parte continuam inéditas – da nossa homenageada desta noite solene.


Voltava Dona Gena (Maria Eugênia) de Natal para o Assu, onde viveu por mais de 60 anos, e se mostrava encantada com a leitura de “A guerra dos Planetas”, peça então recém escrita por Natí, que inaugurava-se assim como autora dum “teatro espacial” composto por outras peças do gênero, como “Diálogo das Estrelas”; enfim, como uma dramaturga que bebia e se nutria de sua paixão pelos estudos de Astronomia e Ufologia, temas recorrentes naqueles anos ainda próximos da conquista da Lua pelos americanos, em 1969.

Dona Gena não escondia seu entusiasmo – esse entusiasmo que para Baudelaire seria prova de talento – e, enquanto jantávamos em torno daquela comprida mesa patriarcal, fazia-me eu também, então um jovem melancólico e idealista, participante daquela euforia que costuma se manifestar em gente de categoria, e, naquele instante mágico, ao ouvir aquela bela senhora que reconhecia como amiga e mestra – exaltando o talento da amiga que viria a ser minha amiga também-, pensava gravemente nos antigos; esses sábios que consideravam os amigos indispensáveis à vida humana


Sentia-me contaminado, sobretudo, por esse júbilo misterioso que produz o talento; o talento que Dona Gena exaltava em Natí Cortez, dotada, como poucos, para o teatro e –, virtude não menos preciosa –, abençoada com uma prolífica maternidade. Foi mãe de 24 filhos. Assim, voltando eu para Natal, como o feliz portador das notícias de Maria Eugênia, que ficara no Assu, fui visitá-la à Rua Felipe Camarão 453, Cidade Alta, bairro em torno do qual surgiu nossa bela cidade natal. Um casarão recuado com alpendres, numa reminiscência sertaneja, para mim, empática e afetiva, pois lembrei-me imediatamente de minha infância no Estevam.

Logo, ao ver-me, surpreendendo-se com minha extrema juventude e fervor pela vida da inteligência, fez-se também minha amiga. De minha parte, encantou-me sua verve poética e a atenção que dispensava àquele jovem que fui, todo imbuído de literatura e utopias

Lembro-me de Dona Nati em sua sala, onde havia um piano encostado na parede, como uma professora ou uma atriz em seus domínios, dramaticamente vivenciando seus relatos – os relatos de uma mulher que fora escolhida pelo teatro. Deliciou-me seu espírito, sua memória quase infinita, o enlevo com que evocava a crônica secreta de Natal e seu talento histriônico, essa verve com que insuflava vida em personagens que em seu tempo de menina viu e conheceu em trânsito pelas ruas de Natal; uma pessoa, repito, dotada daquela vontade de comunicação ilimitada que se traduz em talento.

Confesso publicamente minha dívida intelectual com essas duas mulheres às quais, aqui, tenho me referido: Natí Cortez e Maria Eugenia, ambas amigas de muitos anos, e eu – aquele jovem que estudava e sabia ouvir os mais velhos com atenção e proveito -, amigo delas. Tínhamos em comum, Dona Natí e eu, a coincidência de termos nascido no mesmo dia 8 de Setembro, consagrado à Natividade de Nossa Senhora, uma data sublime para os católicos. Acrescente-se a esse simbolismo, no meu caso em particular, ter nascido no Ceará Mirim, aquele antigo burgo cuja paróquia é consagrada a Nossa Senhora da Conceição


Natí Cortez abriu-me as portas de uma Natal pretérita e cheia de vida e acontecências que muito me encantaram e aguçaram em mim a curiosidade acerca de uma história que subjaz no imaginário coletivo da cidade. Por ela, soube histórias velhíssimas, curiosas e pitorescas, remanescentes de uma crônica que jazia esquecida nos desvãos e escaninhos de sua memória hospitaleira.

Quisera puder estender-me um pouco mais na evocação dessa escritora que se tornou testemunha generosa de seu tempo que se conta em oito décadas. Quero, porém, poupar-me do desgosto de, involuntariamente, provocar o sono em tão distintos pacientes. Concluo, pois, estas palavras, citando uns versos de autoria de Ana Maria Cortez, uma das filhas de nossa homenageada, há muitos anos uma cidadã francesa: “Através da vida de nossos mortos, vemos/ os trajetos e a morte inevitável. Estando em vida/ e sendo mortal, um ser procura estar em vida e nunca ser mortal”

– In “A Poesia é uma História para Contar”