sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Nos tempos do integralismo.


Cascudo e as músicas populares
Brasileiras.

 

 
Pesquisa de Luiz Gonzaga Cortez, jornalista.

 

 
O potiguar Luiz da Câmara Cascudo, cujo edifício folclórico-literário que construiu na aldeia potengina é de domínio universal, compulsando livros, fuçando bibliotecas e realizando algumas pesquisas de campo, nos anos que a sua juventude permitiu, não só foi comentarista de assuntos políticos nacionais e internacionais quando integrava a Ação Integralista Brasileira, movimento nacionalista criado pelo escritor paulista Plínio Salgado, em 1932 para se contrapor ao avanço do comunismo. Plínio foi um dos principais mentores da Semana de Arte Moderna, em 1922. Para os que não conhecem a nossa História, é bom lembrar que o movimento fascista internacional influenciou ou gerou diversos movimentos nacionais, de direita, revolucionários-nacionalistas e cristãos, apoiado pelos governos e regimes burgueses e capitalistas. No Brasil, o jornalista e escritor Plínio Salgado, católico praticante, após ler Marx e Lenine, e observar o avanço do comunismo, criou a AIB, espelhado no regime fascista de Mussolini, na Itália, que estava abençoado pelo Vaticano. O comunismo deu o primeiro passo no totalitarismo, em 1917, na implantação do regime comunista na Rússia, cujos ideais se espalharam pelo mundo. Pouco tempo depois, em 1926, Mussolini instalou o "fascio" em Roma. Aí, meus amigos, surgiu o totalitarismo de direita. Nesse contexto, Cascudo, católico, ex-monarquista, vestiu a camisa-verde dos integralistas, todos abençoados por Dom Marcolino Dantas e o professor Ulisses de Góis.Além de pesquisador, foi comentarista do primeiro time do jornal A Ofensiva, porta-voz da Ação Integralista Brasileira-AIB (1932-1937), que era editado no Rio de Janeiro. Nas minhas pesquisas sobre esse intelectual conterrâneo, encontrei um artigo de Cascudo sobre a música sertaneja, publicado em 1934, no Rio, e que não era do conhecimento dos pesquisadores da obra cascudiana, salvo engano. Leiam.

 

 
Música Sertaneja

 
Luiz da Câmara Cascudo

 
Música sertaneja, no sentido expresso do termo, nunca existiu. Para dançar dançam o que se dança no litoral. Valsas, polcas, schottichs, quadrilhas, tangos, agora maxixes, fox, rags e até rancheras, que adaptaram às corridinhas da saudosa polca-pulada. Para a sociedade rica, abastada ou mediana, não há maior desdouro que falar em sambas. Sambas não são as danças mas o próprio baile, a reunião festiva. Samba é de gentinha, dizem. O samba primitivo era uma simples dança de roda, herança do índio, em suas danças coletivas, mas sem mulheres. O português colocou o ponto, a parada com a saudação convidando para sair e também trouxe o elemento feminino para o meio. O negro colaborou com a umbigada. Samba vem de semba, que quer dizem umbigo.
A impressão geral da musica sertaneja só se pode ter ouvindo cantadores. A improvisação nos bailes é diminuta e as vitrolas acabaram matando, numa percentagem séria, a facilidade criadora do sertanejo com temas musicais. O que se nota depressa é a acomodação da melodia temática às exigências do ritmo sertanejo, ao compasso ad-libitum, com que estão habituados a fugir da própria quadratura melódica.
Mário de Andrade ("Ensaio sobre a Música Brasileira", págs. 12, 14, etc, "Comp. de Hist. da Musica", pág. 177, etc.) salientou esta coadunação libertadora . Mas distinguiu que se dava sentido melódico, caindo num movimento oratório que ia, reconhece ele, libertando-se da quadratura melódica e até do compasso. Mario registrou brilhantemente este aspecto que, para mim, é uma característica:
...esses processos de ritmica oratória, desprovida de valores de tempo musical contrastavam com a música portuguesa afeiçoada ao mensuralismo tradicional europeu. ... e a gente pode mesmo afirmar que uma ritmica mais livre, sem medição isolada musical era mais da nossa tendência, como provam tantos documentos já perfeitamente brasileiros. Muitos dos cocos, desafios, martelos, toadas, embora se sujeitando à quadratura melódica, funcionam como verdadeiros recitativos.
O Desafio não é espécie musical. É um gênero. Tem várias partes, como uma suíte, diferindo de ritmos e de tipos melódicos. Começa pela colcheia, passa à carretilha, isto é, do setissilabo para as sextilhas e atinge ao martelo, reminiscência perfeitamente clássica que o sertanejo não inventou mas recebeu dos portugueses. O martelo, com rimas alternadas, vai desde seis a dez versos em alexandrinos. O desenho melódico obrigatoriamente se modifica e, às vezes, inteiramente. O instrumento de acompanhamento, no desafio é a viola apenas; jamais solam, mas seguem em acordes menores, o recitativo puro da chamada cantoria.
Um Cantador famoso não se serve da viola senão nos intervalos das frases recitadas. Termina o canto numa fermata ou num ralentando, ambos guturais, acrescidos pelo processo de nasalação que é tão comum que melhor se dirá natural. A viola é de pinho, com seis cordas-duplas de aço, afinada por quartas, com dez e doze trastos no braço.
A preferência do cantador sertanejo, e da maioria absoluta das modinhas e cantos populares é para os tons menores, dó, ré, lá.
Os temas são deliciosamente simples. A maior influência portuguesa ainda é notada nas rodas infantis. O negro e o índio são os responsáveis pelo ritmo profundo, a obstinação rítmica que, sendo libertada pela expansão dos recitativos, nem por isso diminui de intensidade e segurança. Mas o negro, todos sabem, é mais escravo do ritmo. Veio da percussão.
O ritmo, que Mario de Andrade encontrou como a expressão mais positiva no Brasil, a síncope de sime-mínima entre colcheias no primeiro tempo de dois-por-quatro, leva para a constância da nossa melódica popular, o movimento descendente de sons rebatidos, igualmente notado pelo erudito professor do Conservatório de São Paulo.
O desenho simples não exclue a pureza, a sobriedade incrivelmente melódica, inesquecível e linda. Certas linhas são verdadeiras obras primas de naturalidade, de doçura, a um tempo meiga e triste. Nenhum traço tipicamente sertanejo em assunto musical e alegre. Tem um abrandamento, um trabalho preliminar de melancolia, para ficar ao gosto de todos. A porção maior das modinhas é em menor. Os melhores sambas de emboladas são menores. No auto popular do Bumba-Meu-Boi os tons menores são dominantes. Mario de Andrade teve a felicidade de reparar que substituímos a franqueza impositiva do português pela delicadeza mais mole e familiar. No linguajar diário dizemos mi-dê, vá-se imbóra por dê-me e vai-te embora.Assim em música o sertanejo troca a tônica presente pela mediante tonal, dando um ambiente inenarrável de malinconia.
Vivas, arrebatadas, impulsivas, folionas, o sertão só conhece as rondas das crianças.Os brinquedos-de-rodas, cirandas, ponte-da-liança, a moda-da-carrasquinha, bom-barquinho são todos em tons maiores,estimuladores de movimento e de vida. Parece, por uma ironia sutil, que desejamos dar às crianças um ambiente de despreocupação e de vivacidade irreesponsável. Homens, só saberão cantar em tons merencórios.
Daí um cantador sertanejo afirmar que: a princípio são fulôres

A choradêra é no fim...

 
Transcrito do jornal porta-voz da Ação Integralista Brasileira, Rio de Janeiro, fundado por Plínio Salgado, A Ofensiva, de 05 de julho de 1934, p.8. Reescrito em 31.12.2010.

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