O "PÁSSARO BRANCO"
Laélio Ferreira (pesquisador, poeta)
Numa madrugada de muita chuva e relâmpago, voando baixo e sem nenhuma visibilidade, o monomotor Breguet passou por cima de Parnamirim, roncando. Pouco depois, no lusco-fusco do alvorecer, os poucos moradores da Fazenda "Maracujá", em Santo Antônio do Salto da Onça, assombrados, ouviram o rojo daquele "bicho do céu" torando mato ralo no tabuleiro até parar, fumaçando, nas moitas de xiquexique.
Correu, todo mundo, para acudir. Um dos aviadores, socorrido pelo colega, gemia baixo, com profundo corte na testa. Destroçado, o avião, pintado de branco, tinha, na fuselagem, a figura azulada de um pássaro e uma legenda: "L'Oiseau Blanche" ("O Pássaro Branco").
Começara mal, para os tripulantes, o raiar do dia 17 de dezembro de 1929. Voando a 150 kms por hora, com um moderníssimo motor Lorraine de 450 HPs, tinham saído de Sevilha (La Tablada), na Espanha, 48 horas antes da queda, ao meio-dia de 15 de dezembro. Haviam sobrevoado o Marrocos e a Mauritânia – de onde, em Port Etienne, embicaram na direção da América do Sul. Natal e Parnamirim serviriam apenas como pontos de referência. A meta, o recorde que buscavam, era chegar a Montevidéu, no Uruguai, sem escalas. São Pedro e a tempestade não permitiram! Viram, de longe, do mar, o piscar do farol da Fortaleza dos Reis Magos. Neca de Parnamirim, da pista dos franceses da Aeropostale! Tudo breu, escuridão!
Molhado, sangrando na testa, o fidalgo Capitão León Challe, do Exército francês, herói condecorado na Grande Guerra, filho de general, detentor de mais de uma dezena de recordes mundiais de aviação, é acolhido com carinho por um casal de velhos, na humilde casinha de taipa e chão batido. O Tenente-Coronel Tydeo Larre Borges, do Exército uruguaio, na solidária companhia de vaqueiros, vai pedir socorro na vizinha Fazenda "Jucá", de Epaminondas Martins, por coincidência Prefeito do município.
Larre Borges, nesse final de década (1929), já era figura legendária no Uruguai e tinha, tanto quanto o francês Challe, renome internacional. Dois anos antes, em 03 de março de 1927, comandando um hidroavião, o "Uruguay", caiu no litoral marroquino (Guad Fatma) e com três companheiros de vôo foi capturado por nômades do deserto, que pediram resgate de 5.000 pesetas ao governo do Marrocos Espanhol. No dia 05, os franceses da Aeropostale, Ville e Mermoz, baseados em Cap Juby, localizaram os restos da aeronave. Presos aos lombos de camelos, os uruguaios foram localizados, do ar, no dia 07, por Guillaumet e Riguelle. Exupéry – aquele mesmo, o do "Pequeno Príncipe" - e Reine, no dia seguinte, chegam ao acampamento dos seqüestradores, em Puerto Casando, para negociar. Os árabes, alvoroçados, resolvem aumentar o preço para a soltura de Larre e seus companheiros. Estabelecida a confusão, três reféns correm para o Breguet de Reine. Borges, num golpe de sorte, entre tiros e desaforos em três idiomas, também se escafede no outro avião, com Saint-Exupéry.
Um dos pilotos resgatados foi o Capitão José Luis Ibarra. Coincidentemente ele e Larre Borges foram, no Campo dos Afonsos, colegas de turma do Sargento João Menezes, falecido em 1920, natalense, com quem fizeram larga amizade, no Rio. O diabo é que – vamos ver - a terra do Sargento não tratou muito bem o oficial uruguaio!
Depois da estadia forçada no Rio Grande do Norte, obtendo alta León Challe, partiram os aviadores, no dia 22, para Montevidéu, onde foram homenageados. Além do pouso não previsto, do acidente, um incidente lamentável marcaria a passagem do futuro Brigadier General Larre Borges por Natal. Sem dúvida dolorido na alma e no corpo, acompanhando, no hospital, o tratamento do companheiro francês e amargando a derrota por não ter concluído o reide, ao não aceitar um intempestivo e provinciano convite para "um banquete de homenagem" na Escola Doméstica de Natal – na época era "chiquérrimo" ! –, o grande aviador entrou em rota de colisão com os costumes locais, provocando a ira da elite e o conseqüente ataque impiedoso da imprensa, açulada pelo padre João da Matta.
Dias depois, de Montevidéu, com elegância, procurou desfazer o "imbróglio" constrangedor. Em cartas aos jornais da cidade, em bom português, afiançou a antiga admiração pelo Brasil, a convivência cordial com os brasileiros e a passagem pelo Campo dos Afonsos, revelando, ainda – para surpresa de muitos – ser a esposa (Elena Gallarreta Urrutia), a mãe dos seus filhos, brasileira ! Morreu de saudade, o Brigadier General, em 1984, aos noventa anos, uma semana depois da morte da sua Elena – com quem viveu setenta.
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